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domingo, 28 de dezembro de 2014

O Incêndio 1


Corria o ano de 1951, inverno muito frio, daqueles de renguear cusco e como morávamos em Pelotas, enfrentávamos aquela umidade que torna a cidade a mais úmida do mundo.

Dizem até ser mais úmida que Atlântida, que fica a algumas léguas de queixo para Leste no fundo do Oceano Atlântico. Mas bah! Bota umidade nisto.

Entretanto dias ensolarados haviam transformado o nosso rincãozinho “arrabalero” em uma querência iluminada, quentinho ao sol e de um céu anil que doía nos olhinhos.

                        Mamãe (1955)

Mamãe como sempre trabalhava em casa como uma condenada, cuidando de quatro filhos, os alimentando, banhando, lavando e passando, principalmente os impecáveis uniformes de papai, que na época era Segundo Sargento do Exército.

Minha irmã mais velha, Ieda contava com 12 aninhos, era um xiruzinha de belos cabos negros que quando corria pelo pátio fazia com que eles balançassem de um lado para outro, pois eram cabelos lindos e pesados.

Joaquim Luís, geralmente solitário tinha 8 anos, mas era muito atilado para a idade.

                                Eu, o Esqueletinho. 

Eu, um mandinho bacudo, magro de aparecer todos os ossos, tinha naquele ano apenas seis anos, e finalmente Lúcia, a mais nova, e completamente diferente dos demais, pois era a única clarinha da família, com seus cabelos loiros ondulados. A cara do pai e os cabelos do avô materno, um uruguaio neto de espanhol.

Ou seja, um trio de curumins tendo como irmã uma verdadeira Gata Amarela desparceirada na aparência.

Aquele dia não foi um dia atípico. Tudo transcorria com normalidade. Colégio para os dois mais velhos, brincadeiras e muitas entrevero entre os quatro.

Mamãe lavou várias roupas, e como vinha fazendo dias de sol resolveu naquele dia lavar vários cobertores e colchas, porém a umidade aumentou, uma garoa caiu logo após o meio-dia.

Passou-se a tarde e nada da roupa secar, principalmente os cobertores que ela havia estendido em um grande galpão que ficava bem ao fundo da casa.

Nesse galpão havia dois tanques. Um deles enorme que servia como depósito de água, o outro menor que ela usava para lavar as roupas e após deixava-o cheio d’água para alguma precisão, devido à precariedade do abastecimento.

Da cozinha para o pátio interno, onde havia uma grande porta, cujo em sua folha da direita, bem embaixo havia um quarto de circulo aberto que servia de entrada e saída de nossa gata, a Mica, tinha outro tanque que ela mantinha também cheio e coberto com tábuas e uma lona, também para ser usada em caso de necessidade.

A tardinha caíra e como as roupas, principalmente as de cama não havia secado totalmente, mamãe fez em grande jirau de ripas de madeira, usando como base a mesa da cozinha e seis cadeira em volta de um grande fogareiro de ferro fundido, a carvão, onde em alguns dias de sol ela cozinhava aquelas comidas saborosas feitas naquele pátio interno.

Hoje as dondocas reclamam do serviço de casa tendo fogões a gás, micro-ondas, fornos e fogões elétricos etc. e tal.

Sobre esse jirau mamãe estendeu com cuidado as roupas e com o fogareiro acesso embaixo secaria principalmente os cobertores.

Vez em quando ela ia até a cozinha e dava uma olhada nas roupas, mas mantinha a porta de acesso às outras peças fechada para que nenhum filho fizesse alguma traquinagem.

A noite caiu. Papai estava mais uma vez de serviço no quartel, onde passaria aquela noite, provavelmente de sargento-de-dia em sua Companhia. Não lembro se a Quarta de Fuzileiros ou uma de Petrechos Pesados.

                        Eu e Norma, 62 anos depois.

Quando chegou por volta das dezenove horas, o dia já escuro chegaram à nossa casa as menina Norma e Milani filhas do Senhor Ricardo Stein e de Dona Susana Klomp Stein, vizinhos que moravam em uma chácara ao fundo de nossa casa, com acesso por uma servidão de passagem ao lado de nosso pátio.

Quando elas chegavam, a alegria era a tônica, principalmente com as histórias da bela Milani, sempre algariada. Ambas eram pinguanchitas, belíssimas. Mas muito bonitas.

Lá pelas tantas as duas irmãs recolheram-se para sua casa e nós ficamos à porta do lado, pátio externo olhando as meninas que pela servidão de passagem, chamada de Corredor das Bochas iam folheiritas, iluminadas pela também belíssima Lua.

Entramos momento em que mamãe trancou a porta lateral e foi dar uma olhada nas roupas que secavam sobre o calor do fogareiro a carvão.

No momento em que ela abriu a porta interna que dava acesso à cozinha, a corrente de ar fez com que grandes labaredas se esparramassem de relancina por esta peça que era a maior da casa.

Provavelmente a gata Mica tenha, naquele dia frio, procurado um lugar quentinho para dormir e em saltar para cima dos cobertores fizesse com que uma ponta da coberta caísse dentro do fogareiro o que foi de imediato incendiada.

Mamãe ao ver as chamas lambendo o forro da cozinha, num pulo correu esquivando-se do fogo, abriu a porta do pátio lateral e com um balde de lata, usando primeiramente a água do tanque coberto começou numa luta titânica contra as labaredas que tomavam conta da cozinha.

Extenuada, não desistia e quando neste tanque faltou água corria para o galpão dos fundos e de lá incansavelmente trazia baldes e baldes d’água até debelar o fogo.

Todos os cobertores, colchas e algumas roupas não conseguiu salvar, tampouco três cadeiras e a mesa que ficou parcialmente destruída.

Enquanto mamãe como uma heroína peleava para debelar as chamas, Lúcia no desespero de uma criança de três anos, querendo ajudar a debelar o fogo, vendo mamãe desesperadamente jogar baldes e mais baldes d’água, jogou um tamanco de madeira no fogo para espantar aquele bicho que tudo queimava.

Foi hilário e ao mesmo tempo triste.

Após muito lutar como uma fera mamães consegui finalmente apagar as chamas e com mais calma fazer o rescaldo.

Como era uma noite muito fria, mamãe nos colocou em dois colchões em um canto da sala e nos cobriu com alguns panos, casacões e algumas roupas, pois nada restara para servir de coberta.

Mamãe dormiu coberta em sua cama com apenas um casaco.

                            Mamãe. (anos 70)

Minha amada heroína. 


Glossário:

Algariada – Brincalhona. Cabeça-nas-nuvens – Alegre.
Arrabalero - Distante. Arrabaldes.
Bacudo – Sem cultura. Ignorante.
Cabos negros: Cabelos negros.
Curumins – Meninos.
Cusco – Cachorro pequeno. Vira-latas.
Desparceirada – Sem parceiro. Apartada.
Entrevero – Rusga. Briga.
Folheiritas – Rápidas. Sem percalços.
Jirau: Trempe. Suporte.
Légua de Queixo – Longe. Mais longe do que légua de beiço.
Mandinho – Menino pequeno. Piá.
Peleava: Lutava
Pinguanchitas – Meninas. Mocinhas.
Precisão: Necessidade.
Querência – Terra natal. Lugar onde se vive e ama.
Relanciana – Rapidamente.
Xiruzinha: - Indiazinha.

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