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sábado, 3 de janeiro de 2015

Os Cabos – 2


Era fim dos anos 60, tempos difíceis, Regime de Exceção. Militares no Poder.

Comandava o então 9º Regimento de Infantaria o Coronel Antônio da Fonseca Sobrinho, homem duro, severo que não levava ninguém para compadre.

Apesar de ser um militar enérgico, eu, na época um simples Cabo caíra na simpatia de tal Coronel, desde que eu fizera a seu pedido um detalhado mapa das instalações do regimento, com suas medidas, ruas, a Avenida Central do Regimento, pavilhões de comando, companhias e todas as demais dependências, inclusive a estrumeira e o paiol, não esquecendo sequer o local onde ficava o busto do General Sampaio.

Pouco tempo depois o referido Coronel mandou me chamar a seu gabinete e me incumbiu, em tempo exíguo, já que no outro dia pela manhã ele viajaria para uma reunião com o Comando do então III Exército, de fazer dez mapas, detalhando ruas, avenidas e estradas do município de Pelotas, cada um contendo informações diferentes e sigilosas.

Como um doido me debrucei no serviço, passei um fim de tarde e uma noite inteira nas sala de instruções de Oficiais desenhando aquela quantidade de mapas. Em cores diferentes assinalando tudo o que me fora pedido.

Quando tocou a alvorada tais mapas já estavam prontos, e quando o Coronel Fonseca chegou ao Regimento, para a formatura diária e para a passagem de comando a ele entreguei todos os mapas solicitados.

Apertou a minha mão e disse:

- Você é um monstro!

Entendi como elogio, o que de fato era mesmo, pois tão logo voltara dessa reunião em Porto Alegre, mandou o Capitão S/1, publicar no Boletim Interno da Unidade um extenso elogio para mim. Tal elogio foi por mim mesmo datilografado já que eu desempenhava a função de datilógrafo do Boletim Interno, de edição diária.



Na CCS – Companhia de Comando e Serviços do Regimento tinha no efetivo dois Cabos velhos, o Cabo Avelino, com mais de dez anos de serviço, um excepcional corneteiro e músico, que obviamente pertencia a Banda do Regimento, homem negro corpulento, mui simpático e prestativo e um Cabo Enfermeiro de nome Sérgio, que tinha mais ou menos 6 anos de serviço, também um homem grande e forte, de cabelos bem negros, porém de pele branca.

Ambos eram como irmãos, muitos anos servindo junto na mesma Companhia, desenvolveram uma amizade fraterna ao extremo.

Seguidamente, devido à amizade que nutriam, quando se encontravam em momentos de folga, engalfinhavam-se em lutas corporais de tirar o fôlego, ambos com conhecimento de lutas como o judô, rolavam pelo chão buscando dominar o opositor.

Depois, riam despregadamente, abraçavam-se e um tocava flauta no outro, dizendo coisas como “Tu é um fracote”, “Tens muito que aprender”, “Vou continuar te surrando”, e por aí ia a brincadeira.

Porém o Cabo Avelino, por ser corneteiro, depois dessas refregas dizia de gozação ao Cabo Sérgio:


- Ainda vou tocar o teu silêncio.

E riam, muito.

Os soldados novos ao ver os dois se engalfinhado achavam que era as “ganhas”, mas na verdade era apenas as “brincas”. Pois os dois nutriam um pelo outro uma amizade invejável.

Era uma brincadeira meio pesada, dizer que “Ainda vou tocar o teu silêncio”, pois só se toca o silêncio para um militar quando de seus funerais.

Mas a brincadeira era sempre seguida de um forte abraço amigável e sincero.
 
Certo dia tocou horror, e o Regimento foi posto em estado de prontidão severa.

Ninguém poderia sair do Regimento, todas as 10 Companhias dia e noite prontas para qualquer ação.

No terceiro dia houve um relaxamento na prontidão e alguns Oficiais e Graduados casados tiveram a permissão, de em grupos, irem até suas casas, ver suas famílias e em menos de duas horas estarem prontos no Regimento.

Por volta das 18 horas um grupo de Oficiais e Graduados foi liberado, entre esses estava o Cabo Enfermeiro Sérgio, louco para ir a sua casa ver a sua esposa e filhinha, de dois ou três anos.

Naquela tarde como de praxe datilografei o Boletim Interno, onde em sua I Parte é a de Serviços Gerais e Administrativos, onde era publicado em primeira página a Guarnição de Serviço para o dia seguinte, Oficial de Dia, Adjunto, Comandantes das Guardas 1 e 2 e entre outros o Corneteiro de Dia, o qual foi escalado o competente Cabo Avelino.

Quando o Cabo Sérgio retornava ao Regimento em sua lambreta azul, a toda velocidade para não chegar atrasado, um caminhão teve que bruscamente frear. Infelizmente o Cabo Sérgio não conseguiu dominar sua lambreta, indo parar embaixo das ferragens do caminhão.

Correria, consternação geral dentro do regimento, voluntários se apresentando para doar sangue ao Cabo Enfermeiro que havia sido levado para a Santa Casa de Misericórdia. Muita dor e sofrimento. Muitos Soldados, Graduados e Oficiais pelos cantos em silêncio.

O jovem Cabo velho não resistira e naquela mesma noite, antes das 21 horas viera a falecer.

Tristeza e consternação geral.


Mas como homem de valor e militar por excelência não foge ao dever, na tarde do dia seguinte o Corneteiro de Dia estava no Cemitério do Fragata, com seu melhor uniforme, pronto para a última homenagem a um amigo que ele tanto gostava. Não era só irmão de farda era um irmão escolhido entre milhares.

Na hora do silêncio, com a Guarda de Honra em forma, com civis e militares consternados o Cabo Avelino com postura militar, altiva e firme, entoou o silêncio de maneira extraordinária, completa e comovida.


Eu o observava, e em seu rosto negro as lágrimas vertiam em profusão, vindas do fundo do coração, pois o destino fora com ele muito cruel, mas em nenhum momento ele fraquejou.

Um destino que ninguém jamais pensaria que pudesse acontecer, muito menos o bom Cabo Avelino, que em suas brincadeiras com o seu melhor amigo sempre dizia:

- Ainda vou tocar o teu Silêncio!

Quanta dor e emoção, quantas lágrimas, mas o Cabo Corneteiro cumpriu com galhardia o seu dever, o seu estrito dever de Corneteiro de Dia, coisa que jamais gostaria de fazer, mas que o destino maleva reservou sorrateiramente.



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