Sexta-Feira Santa.

Para início de conversa ontem, de sexta-feira santa não teve nada, pura e ilusória tradição ou enganação.

Em primeiro lugar foi um dia igual aos outros, com sol ou chuva, com frio ou calor.  (escrevi o sol com “s” minúsculo, pois estou me referindo a luz emanada pelo Sol).

Manda a tradição que se coma carne de peixe nesse dia, e todos, levados pela mesma euforia do comércio natalino, dia das mães, páscoa ou outra coisa qualquer inventada pelo comércio para vender e vender, anteontem amontoaram-se em feiras e mercados atrás de peixe, como abelhas algariadas na colmeia, reclamando e até agredindo com palavras, gestos e atos os comerciantes e outros compradores pelo preço exorbitante do pescado ou pelo esbarrão sofrido.

Mas era véspera de dia santo.

Eu, assim como os meus, como peixe no mínimo duas vezes por semana, aliás, esta semana o consumi na segunda-feira,(lunes) na terça (martes) e na quinta,(miércules), porém pessoas, que não são poucas, aqui no Brasil, consomem peixe talvez uma vez por ano, pois não gostam, ou não tem esses hábito saudável, mas ontem foi um dia especial. 

Mas ontem, os diferentes povos brasileiros, se empanturraram de peixe. Encheram a cara de vinho, dos mais elaborados às porcarias que dizem ser vinho, e muitos ficaram bêbados e brigaram, disseram bobagens e agrediram até seus irmãos. 

Mas foi dia santo.

Muitas foram as mulheres que vendo seus maridos borrachos deram linha para os amigos ou vizinhos e talvez até tenham tirado uma casquinha. 

Mas foi dia santo.

Foi tão especial esse dia que os hipócritas que passaram o ano inteiro, desde a dita sexta-feira santa do ano passado pecando, agredindo, blasfemando, intrigando, orando para pedir o mal dos outros, rezando para levar vantagem, fazendo coisas erradas, falando da vida alheia, puteado (bem, até aí...) e outras coisas, comeram cadáveres o ano inteiro, sim, pois chegar ao açougue e comprar carne de um bicho morto é comer cadáver, ou não, e muitos não tiveram dó em matar para comer, acharam que seriam salvos das chamas do inferno (hipotético e hilário), se comessem peixe. 

Além disto, muitos outros males fizeram como roubar, extorquir, implicar, amaldiçoar, resmungar, ofender, ficar com o troco que lhe foi dado a mais, discriminar, intrigar, censurar, e como aquela evangélica irracional e tararaca destruir obras de arte, porém comeram peixe e acharam que seus pecados foram apagados.

Acharam eles.

Pura e repugnante hipocrisia.

Acharam os extremamente hipócritas que as coisas erradas são normais, pois foram feitas em dias normais, aí o pecado não vale, só valem os feitos em dias santos.

Besteira. Burrice, Sandice.

Ontem, como tenho a consciência tranquila e não me deixo levar pelas babaquices, comi o que sempre como. 

Carne vermelha.

De preferência correndo sangue. Afinal tenho em minhas veias o sangue de minha avó, uma velha e atilada Charrua, que, como já contei, quando meu avô abatia uma rês, momento em que ele estava tirando o couro do animal, ela se chegava devagarzito, mais sorrateira do que sorro manso, amolando sua carneadeira, levantava o couro do bicho e tirava uma tira longa de carne ainda naturalmente quentinha, e em pé, observando meu avô coureando, ia saboreando os nacos daquela preciosidade sanguinolenta.

Afinal de contas a natureza é brutal, onde uns matam para não morrer e matam para comer.

E se existir um céu ou inferno de certo ela estará no céu, pois nunca foi mulher de fuxico ou de censurar os outros, coisa que muitas evangélicas sequer passarão por perto.

Portanto, ontem comi cadáver, isto é natural e normal, o que não é normal é ser hipócrita e achar que podem enganar os outros se dizendo santinho. Só se for santinho da pau oco, pois o que mais tem neste mundo é gente hipócrita.

E de hipocrisia já estou saturado.

Mas ontem foi dia santo.

Sexta-feira Santa.

Que baita empulhação.