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sábado, 5 de julho de 2014

O Assassinato


O que passo a relatar abaixo está em meu livro sobre memórias, ainda sem título, que em breve publicarei.

Trata-se de um caso envolvendo meus bisavós paternos que possuíam no início do Século passado um bolicho de campanha nas cercanias de Cerrito, no interior do Rio Grande do Sul.



É um relato meio longo, mas vale a pena ler.



O MASCATE

No início do Século XX, meus bisavós paternos estavam estabelecidos com um bolicho de campanha, onde comercializavam secos e molhados em seu pobre, mas bem sortido estabelecimento.
Certa manhã chegou ao bolicho um mascate árabe, que entrara no Brasil com passaporte turco, pois quase todos os países árabes pertenciam ao Império Otomano, assim sendo esses árabes acabaram sendo registrados como turcos, o que até hoje causa grande confusão entre o povo que chama os árabes de turcos.
Semelhante caso vamos encontrar no Uruguai, onde os árabes procedentes do Império Otomano que existiu entre 1299 a 1922, hoje Turquia, eram registrados como turcos asiáticos, como o Bisavô de minha mulher, árabe do Líbano, que foi registrado no Uruguai como turco asiático.
Tais mascates eram conhecidos como caixeiros viajantes. Pois em lombo de mulas carregavam caixas de couro chamadas de bruacas, cheias de mercadorias para serem comercializadas pelo interiorzão do Brasil.
Esse caixeiro viajante ao chegar ao bolicho de Floribal, meu bisavô vendeu-lhe várias mercadorias, incluindo roupas e baixeiros, que depois seriam revendidos por minha bisavó Maria Emília às mulheres da redondeza. Esses baixeiros eram roupas íntimas que seriam comercializados as escondidas, pois pessoas de princípios não compravam roupas íntimas ostensivamente, nem tampouco faziam exposição deste material como hoje é feito, inclusive usando manequins vivos para expô-los nas grandes lojas e shoppings.
Acertado o preço das mercadorias em 60 contos de réis, meu bisavô perguntou ao caixeiro se haveriam juros, já que ficara de pagar em 45 ou 60 dias.
O viajante disse que não cobraria juros, pois como Floribal era seu antigo comprador não teria nenhum acréscimo.
Floribal, precavido, deixou bem frisado que então guardaria tal quantia para ser entregue quando o caixeiro voltasse.
Ao mesmo tempo em que em uma folha de papel pardo que servia para embrulhar o pão ele anotou com o lápis o valor e guardou o papel depois de mostrar ao caixeiro.
- Quando o senhor voltar estará aqui a sua espera a quantia de 60 contos, tenha eu vendido ou não a mercadoria.
- “Certo senhorr Floribal, non se breocubarr, bois a breço não subirr”.
Passado algum tempo, pouco mais de trinta dias o tal caixeiro viajante, de origem "sírio libanesa", voltou ao bolicho e quando recebeu a quantia estipulada reclamou, pois o preço era outro.
Meu bisavô, surpreso com o exorbitante preço que estava sendo cobrado pegou de uma prateleira sob o balcão a folha onde havia anotado o preço e a data da referida compra e mostrou ao mascate.
- Non! Non ser esta breço, a senhorr deve bagarr a breço que eu cobrarr. – Disse o árabe, enrolando-se nas palavras.
A desavença sobre o preço redundou em uma discussão acalorada.
- Mas o Senhor disse que o preço não seria alterado - Falou meu bisavô.
 - “Non, non! As “breços” sobe a toda momenta. E “bode bergunta bara” qualquer um que vai diz isso”. – Disse o árabe.
- Mas o senhor me garantiu – retrucou meu bisavô.
- “Eu não bode faiz um coisa desta se a breço sobe, eu tenho que cobra mais.” - Disse o mouro.
Não tendo como argumentar com o árabe, pois esses comerciantes eram por demais ardilosos quanto a negócios, minha bisavó Maria Emília, que a tudo observava, vendo que não haveria argumentos, pois o mouro continuava irredutível, deu de mão em sua longa adaga de aço Solinge, aproximou-se com as mãos postas para trás e disse:
 - Homem que não honra o fio de bigode não merece outra coisa se não isto!
E em um movimento rápido e certeiro trespassou a buchada do sírio, com sua carneadeira de quase três palmos de duro, afiado e frio aço, e o caixeiro foi se desmoronando devagarzito até ficar imóvel em enorme poça de sangue, com os enxergas esbugalhadas de dor que queimava suas tripas e no desespero diante a morte que no soflagrante chegara a galopito sem levantar “polvadeira”.  
        Num pulo, como uma lebre, não havendo ninguém dentro do seu bolicho, minha bisavó trancou a porta e fechou as janelas.
         Como seu comércio ficava em uma picada cercada de mata nativa, pensou minha bisavó em esquentar três batatas e colocá-lo sob o rabo dos animais que com os traseiros queimando correriam desatinadas para bem longe, mas como não dispunha de tempo, e querendo se livrar logo dos bichos tratou de passar o rebenque nas mulas que se foram a destino estrada a fora, no galopito picado, sumindo no horizonte, só indo parar léguas depois, como faziam os burros de padeiros que iam estrada a fora sem precisar ser mandados, pois sabiam o caminho até o próximo comércio.
            O que fazer com o corpo do infeliz?
          Precisavam dar um fim, e minha bisavó teve a ideia de cremá-lo em um forno que tinha meio afastado da casa, no meio das laranjeiras, num velho galpão coberto de santa-fé, onde de quando em vez ela própria assava um naco de carne.
         Maria Emília que já havia fechado a porta da frente do bolicho, verificou se estava bem trancada e se por acaso alguém chegasse, seria atendido pelos costados da casa, junto a cerca de taquara.
         Meus bisavós carregaram o corpo inerte para os fundos da sua tosca moradia, e conforme arrastavam o árabe pelo terreiro ia ficando uma risca larga de sangue que logo depois foi raspada com uma enxada e com baldes e baldes d’água, puxados da cacimba, lavaram rapidamente o chão do bolicho, tirando assim as marcas daquela sangria.
Para sorte deles não haviam inventado o luminol, que denunciaria a presença de sangue por mais que fosse lavado o ambiente.
        Passados, dois ou três dias, continuavam metendo fogo naquele forno, pois ainda muito do cadáver restava. Quando já estavam terminando a lúgubre tarefa de exterminar com os vestígios do desafortunado, por volta do meio-dia, chegaram dois “mata cachorros”, fardados e com seus revólveres empanturrados de chumbo, nas cartucheiras de couro preto, e sorrindo, pois eram velhos conhecidos, foram adentrando ao bolicho, como quem chega à própria casa, meio de pernas abertas de tanto cavalgar naquelas picadas.
        - Buenos dias, dona Maria Emília, disse o primeiro brigadiano, de bigodes espessos que entrou na venda.
         - Bom dia, seu “fulano”. - responde minha bisavó, e completou - O que trás os viventes a estas plagas, quase no fim de mundo, “adonde” até o Minuano chega cansado?
             - Estamos campeando um caixeiro. - Respondeu o policial.
           Quando o segundo policial, acercava-se do balcão de táboa crua, com a boca salivando e olhando desejoso para as garrafas de aguardente expostas numa tosca prateleira, o que já estava entabulando uma conversa com Maria Emília, foi logo dizendo:
          - Mas sabe dona Maria, foram encontradas as mulas daquele “habibi” dos “salamaleques”, o tal caixeiro viajante que anda sempre por estas paragens. Mas o maldito “homi” sumiu como fumaça.
             - “Mas que tal”! - Disse minha bisavó - Por onde será que esse pobre homem andará?
           - Olhe só dona Maria - disse o policial dos vastos bigodes negros - eu acho até que ele nem mais anda, deve estar morto por algum canto, jogado feito um “perro sem doeño” em algum peráu, já cheio de mosca rodopiando algariadas em volta.
           Neste momento adentrou de soco ao pequeno comércio, pela porta dos fundos que dava para o terreiro batido, onde, além das laranjeiras havia uma nesga de terra plantada de milho e feijão já prontos para serem colhidos, meu bisavô Floribal, que foi logo cumprimentando a dupla de policiais militares.
             - Buenos dias, seu “fulano”; buenos dias seu “beltrano”, vão beber alguma “cousa”?
        - Entonces, seu Floribal - disse o segundo policial, vermelho de tanto trago bebido pelas carreteiras tortuosas da existência e que lhe consumiam a vida - podemos “apreciá” um martelinho dessa caña, que me parece ser mui buena? - Dando um passo ao lado para dar passagem a Floribal e aproximando-se logo após dessa porta, onde pode observar, bem ao fundo, entre as laranjeiras um tosco galpão onde se podiam ver rolos de fumaça subindo de uma chaminé para aquele céu de um azul tão brilhante que doíam os olhos.
            Floribal serviu dois martelinhos, e colocou-os sobre o balcão e logo chamou a atenção do “mata cachorro” que estava à porta dos fundos:
           - Aí esta a caña, pode se “aprochegá” e “saboriá” esta pura cachaça que me veio de mui longe e que me disse o vendedor ter sido produzida lá pela Coxilha Grande, feita por algum biriva de mão buena, pois este trago é um dos melhores que já entornei nas goelas.
               Coxilha Grande é como o povo pampeano conhece o Planalto Rio-grandense, terra dos birivas, descendentes de tropeiros paulistas e mineiros que vieram para o Rio Grande do Sul, ainda na época da colônia tropear gado xucro ou apenas levar o couro dos animais abatidos e que se cruzaram com as índias da terra e se aquerenciaram formando este povo de fala mansa que povoa a parte norte e nordeste do Rio Grande do Sul, lembrando que não se deve confundir com os imigrantes alemães ou italianos que chegaram muitíssimo depois e formam duas outras castas, de gente branca e de gadelhas amarelas.
          Esses “mata cachorros” que na época ainda não tinham essa alcunha, sem pestanejarem, olharam para os copos e rapidamente entornaram a cachaça gorgomilos abaixo, quando disse o de bigodes que pela postura dava a entender que era a praça mais antiga da dupla.
          - Buenas seu Floribal, é macanuda esta pura, mas nós “bâmu amontá” nos cavalos e “bâmu” dar uma olhadita aí pelos “peráu”, momento em que fez menção de pegar na guaiaca algumas moedas de contos de réis.
           - Como os policiais estão a serviço - disse Floribal - a caña fica por nossa conta. Afinal, tratam-se de homens “macanudos” que estão sempre aí nos protegendo de algum “maleva” que por ventura venham a atazanar nossas vidas.
         - Buenas, se é assim ficamos agradecidos, mas “bâmu simbora”, pois “temu” que “campiá” esse “turco” - disse um dos policiais.
           Bateram com os tacos dos borzeguins, numa saudação de milico, e cadenciados foram soando os calcanhares no chão de tábua e foram se aproximando da porta de saída, onde a sombra dos cinamomos dois haraganos bem “aperados” manoteavam, de orelhas murchas devido ao calor que fazia.
         Ao chegarem à porta, com uma repentina mudança do vento, que de rebojo bateu, os policiais sentiram no ar o aroma de carne sendo assada, pararam, viraram-se e um deles enrugando as sobrancelhas desgrenhadas perguntou a Floribal, que estático deu uma levantada de cabeça sentido também o cheiro de carne queimada:
            - Está assando uma “carnezita” de ovelha, seu Floribal, cuide lá, pois ela deve estar queimando.
              Minha bisavó antecipando-se ao marido, pois era muito atilada e despachada foi logo dizendo:
            - É um pedacito de capão, mui pequeno, mas que vai dar “pro” nosso almoço. E completou, mas se os senhores quiserem almoçar, eu dou um jeito na bóia.
        - Não, dona Maria, disse o policial de bigodes, nos vamos “continuá” a “procurá” o caixeiro. Voltaremos assim que puder. Aí quem sabe a gente come uma carne, daquelas “buenas” que a senhora sabe preparar.
          E se foram escarranchados em seus cavalos, ao passo, sentindo aquele cheiro de carne sendo, na verdade queimada, e jamais desconfiaram que aquele casal, mais conhecido pelas cercanias do que guanxuma poderia ter alguma coisa a ver com o desaparecimento do caixeiro viajante.
            Jamais apareceu pelas redondezas qualquer outro policial a procura do habibi, entretanto o “causo” rendeu muita conversa e muitas delas contadas pelos “chucos” encostados no tosco balcão daquele bolicho ou mesmo por caixeiros viajantes que sempre traziam novidades, e sobre o caso contavam as histórias mais disparatadas no meio da “biguanada”, que ouvia atentamente, já que tudo era bom para matar o ócio num lugar tão solito e abandonado no meio do nada.
         Certa vez minha bisavó confidenciou para as filhas, Idelvira, minha avó e Anália, se caso os brigadianos quisessem almoçar, ela de certo escolheria um bom pedaço que ainda não havia sido queimado do mascate, temperaria bem e serviria aos brigadianos como sendo carne de ovelha.
E adelante se vai o tempo, despacito como mula de olaria, meio no tranco, mas que passa sem a gente sentir.











2 comentários:

  1. Caro prof. Pedro Teixeira: que conto real fantástico! Primeiro, pela sua bela forma de narrar, algo que é um dom invejado por muitos historiadores. E segundo, pela peculiaridades do relato. Casos envolvendo mulheres e criminalidade são raros. A Dona Maria Emilia era realmente "faca na bota", não? rsrsrs Digno caso de horror, de um lugar e uma temporalidade únicas. Uma das melhores leituras que já fiz sobre o gênero.
    Desejo-lhe um feliz ano novo, com muita saúde, paz e sucesso nas empreitadas da vida. E assim que sair seu livro de memórias, já reserva, por gentileza, um exemplar para eu adquirir. Abração!

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    1. Bom dia meu caríssimo Dário.
      Que a saúde e alegria sejam constantes em tua vida.
      A bisa Maria Emília viveu numa época de atraso e as rixas eram resolvidas no simbronaço do facão ou no trovejar das armas. Ela sempre foi muito introspectiva, poucos amigos e muito dura na educação das filhas ou dos netos, mas careceu de estudo era uma mulher sem muita cultura, como era o povo daquela época, porém muito atilada. Mas viveu muito e morreu de morte natural. Sua vida e seus feitos foram muito escondidos, pois ninguém ousava falar. Com a sua morte muitas histórias vieram à tona, mesmo assim contadas baixinho para que outros não as ouvissem. Lamento que muitas histórias não chegaram a meu conhecimento e o arquivo humano que era minha amada Tia Maria Rafaela foram-se quando ela faleceu aos 98 anos, lúcida como ninguém.
      Fico realmente honrado com tuas palavras de reconhecimento, faço o possível para ser mais fiel possível.
      Meu caríssimo Dário terei o maior prazer em enviar um exemplar de meu livro o que está difícil de terminar, pois sempre há alguma coisa a ser introduzida. Minha filha que é Historiadora está disposta a editá-lo caso eu não possa. kkk! Nunca se sabe.
      Um abraço do tamanho do Rio Grande e que tenhas um belo Natal e um Ano Novo repleto de alegrias e saúde.

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