O que passo a relatar abaixo
está em meu livro sobre memórias, ainda sem título, que em breve publicarei.
Trata-se de um caso
envolvendo meus bisavós paternos que possuíam no início do Século passado um
bolicho de campanha nas cercanias de Cerrito, no interior do Rio Grande do Sul.
É um relato meio longo, mas
vale a pena ler.
O MASCATE
No início do
Século XX, meus bisavós paternos estavam estabelecidos com um bolicho de
campanha, onde comercializavam secos e molhados em seu pobre, mas bem sortido
estabelecimento.
Certa manhã
chegou ao bolicho um mascate árabe, que entrara no Brasil com passaporte turco,
pois quase todos os países árabes pertenciam ao Império Otomano, assim sendo
esses árabes acabaram sendo registrados como turcos, o que até hoje causa
grande confusão entre o povo que chama os árabes de turcos.
Semelhante
caso vamos encontrar no Uruguai, onde os árabes procedentes do Império Otomano
que existiu entre 1299 a 1922, hoje Turquia, eram registrados como
turcos asiáticos, como o Bisavô de minha mulher, árabe do Líbano, que foi
registrado no Uruguai como turco asiático.
Tais mascates
eram conhecidos como caixeiros viajantes. Pois em lombo de mulas carregavam
caixas de couro chamadas de bruacas, cheias de mercadorias para serem comercializadas pelo
interiorzão do Brasil.
Esse caixeiro viajante
ao chegar ao bolicho de Floribal, meu bisavô vendeu-lhe várias mercadorias,
incluindo roupas e baixeiros, que depois seriam revendidos por minha bisavó
Maria Emília às mulheres da redondeza. Esses baixeiros eram roupas íntimas que
seriam comercializados as escondidas, pois pessoas de princípios não compravam
roupas íntimas ostensivamente, nem tampouco faziam exposição deste material
como hoje é feito, inclusive usando manequins vivos para expô-los nas grandes
lojas e shoppings.
Acertado o preço
das mercadorias em 60 contos de réis, meu bisavô perguntou ao caixeiro se
haveriam juros, já que ficara de pagar em 45 ou 60 dias.
O viajante
disse que não cobraria juros, pois como Floribal era seu antigo comprador não
teria nenhum acréscimo.
Floribal,
precavido, deixou bem frisado que então guardaria tal quantia para ser entregue
quando o caixeiro voltasse.
Ao mesmo tempo
em que em uma folha de papel pardo que servia para embrulhar o pão ele anotou
com o lápis o valor e guardou o papel depois de mostrar ao caixeiro.
- Quando o
senhor voltar estará aqui a sua espera a quantia de 60 contos, tenha eu vendido
ou não a mercadoria.
- “Certo
senhorr Floribal, non se breocubarr, bois a breço não subirr”.
Passado algum
tempo, pouco mais de trinta dias o tal caixeiro viajante, de origem
"sírio libanesa", voltou ao bolicho e quando recebeu a quantia estipulada
reclamou, pois o preço era outro.
Meu bisavô,
surpreso com o exorbitante preço que estava sendo cobrado pegou de uma
prateleira sob o balcão a folha onde havia anotado o preço e a data da referida
compra e mostrou ao mascate.
- Non! Non ser
esta breço, a senhorr deve bagarr a breço que eu cobrarr. – Disse o árabe,
enrolando-se nas palavras.
A desavença
sobre o preço redundou em uma discussão acalorada.
- Mas o Senhor
disse que o preço não seria alterado - Falou meu bisavô.
- “Non, non! As “breços” sobe a toda momenta.
E “bode bergunta bara” qualquer um que vai diz isso”. – Disse o árabe.
- Mas o senhor
me garantiu – retrucou meu bisavô.
- “Eu não bode
faiz um coisa desta se a breço sobe, eu tenho que cobra mais.” - Disse o mouro.
Não tendo como
argumentar com o árabe, pois esses comerciantes eram por demais ardilosos
quanto a negócios, minha bisavó Maria Emília, que a tudo observava, vendo que
não haveria argumentos, pois o mouro continuava irredutível, deu de mão em sua
longa adaga de aço Solinge, aproximou-se com as mãos postas para trás e disse:
- Homem que não honra o fio de bigode não
merece outra coisa se não isto!
E em um
movimento rápido e certeiro trespassou a buchada do sírio, com sua carneadeira
de quase três palmos de duro, afiado e frio aço, e o caixeiro foi se
desmoronando devagarzito até ficar imóvel em enorme poça de sangue, com os
enxergas esbugalhadas de dor que queimava suas tripas e no desespero diante a
morte que no soflagrante chegara a galopito sem levantar “polvadeira”.
Num
pulo, como uma lebre, não havendo ninguém dentro do seu bolicho, minha bisavó
trancou a porta e fechou as janelas.
Como
seu comércio ficava em uma picada cercada de mata nativa, pensou minha bisavó
em esquentar três batatas e colocá-lo sob o rabo dos animais que com os
traseiros queimando correriam desatinadas para bem longe, mas como não dispunha
de tempo, e querendo se livrar logo dos bichos tratou de passar o rebenque nas
mulas que se foram a destino estrada a fora, no galopito picado, sumindo no
horizonte, só indo parar léguas depois, como faziam os burros de padeiros que
iam estrada a fora sem precisar ser mandados, pois sabiam o caminho até o
próximo comércio.
O que fazer com o corpo do
infeliz?
Precisavam dar um fim, e minha
bisavó teve a ideia de cremá-lo em um forno que tinha meio afastado da casa, no
meio das laranjeiras, num velho galpão coberto de santa-fé, onde de quando em
vez ela própria assava um naco de carne.
Maria Emília que já havia fechado a porta da
frente do bolicho, verificou se estava bem trancada e se por acaso alguém chegasse,
seria atendido pelos costados da casa, junto a cerca de taquara.
Meus bisavós carregaram o corpo
inerte para os fundos da sua tosca moradia, e conforme arrastavam o árabe pelo
terreiro ia ficando uma risca larga de sangue que logo depois foi raspada com
uma enxada e com baldes e baldes d’água, puxados da cacimba, lavaram
rapidamente o chão do bolicho, tirando assim as marcas daquela sangria.
Para sorte deles não haviam
inventado o luminol, que denunciaria a presença de sangue por mais que fosse
lavado o ambiente.
Passados,
dois ou três dias, continuavam metendo fogo naquele forno, pois ainda muito do
cadáver restava. Quando já estavam terminando a lúgubre tarefa de exterminar
com os vestígios do desafortunado, por volta do meio-dia, chegaram dois
“mata cachorros”, fardados e com seus revólveres empanturrados de chumbo, nas
cartucheiras de couro preto, e sorrindo, pois eram velhos conhecidos, foram
adentrando ao bolicho, como quem chega à própria casa, meio de pernas abertas
de tanto cavalgar naquelas picadas.
-
Buenos dias, dona Maria Emília, disse o primeiro brigadiano, de bigodes
espessos que entrou na venda.
-
Bom dia, seu “fulano”. - responde minha bisavó, e completou - O que trás os
viventes a estas plagas, quase no fim de mundo, “adonde” até o Minuano chega
cansado?
-
Estamos campeando um caixeiro. - Respondeu o policial.
Quando
o segundo policial, acercava-se do balcão de táboa crua, com a boca salivando e
olhando desejoso para as garrafas de aguardente expostas numa tosca prateleira,
o que já estava entabulando uma conversa com Maria Emília, foi logo dizendo:
-
Mas sabe dona Maria, foram encontradas as mulas daquele “habibi” dos
“salamaleques”, o tal caixeiro viajante que anda sempre por estas paragens. Mas
o maldito “homi” sumiu como fumaça.
-
“Mas que tal”! - Disse minha bisavó - Por onde será que esse pobre homem
andará?
-
Olhe só dona Maria - disse o policial dos vastos bigodes negros - eu acho até
que ele nem mais anda, deve estar morto por algum canto, jogado feito um “perro
sem doeño” em algum peráu, já cheio de mosca rodopiando algariadas em volta.
Neste
momento adentrou de soco ao pequeno comércio, pela porta dos fundos que dava
para o terreiro batido, onde, além das laranjeiras havia uma nesga de terra
plantada de milho e feijão já prontos para serem colhidos, meu bisavô Floribal,
que foi logo cumprimentando a dupla de policiais militares.
-
Buenos dias, seu “fulano”; buenos dias seu “beltrano”, vão beber alguma
“cousa”?
-
Entonces, seu Floribal - disse o segundo policial, vermelho de tanto trago
bebido pelas carreteiras tortuosas da existência e que lhe consumiam a vida -
podemos “apreciá” um martelinho dessa caña, que me parece ser mui buena? -
Dando um passo ao lado para dar passagem a Floribal e aproximando-se logo após
dessa porta, onde pode observar, bem ao fundo, entre as laranjeiras um tosco
galpão onde se podiam ver rolos de fumaça subindo de uma chaminé para aquele
céu de um azul tão brilhante que doíam os olhos.
Floribal
serviu dois martelinhos, e colocou-os sobre o balcão e logo chamou a atenção do
“mata cachorro” que estava à porta dos fundos:
-
Aí esta a caña, pode se “aprochegá” e “saboriá” esta pura cachaça que me veio
de mui longe e que me disse o vendedor ter sido produzida lá pela Coxilha
Grande, feita por algum biriva de mão buena, pois este trago é um dos melhores
que já entornei nas goelas.
Coxilha Grande é como o povo pampeano conhece
o Planalto Rio-grandense, terra dos birivas, descendentes de tropeiros
paulistas e mineiros que vieram para o Rio Grande do Sul, ainda na época da
colônia tropear gado xucro ou apenas levar o couro dos animais abatidos e que
se cruzaram com as índias da terra e se aquerenciaram formando este povo de
fala mansa que povoa a parte norte e nordeste do Rio Grande do Sul, lembrando
que não se deve confundir com os imigrantes alemães ou italianos que chegaram
muitíssimo depois e formam duas outras castas, de gente branca e de gadelhas
amarelas.
Esses
“mata cachorros” que na época ainda não tinham essa alcunha, sem pestanejarem,
olharam para os copos e rapidamente entornaram a cachaça gorgomilos abaixo,
quando disse o de bigodes que pela postura dava a entender que era a praça mais
antiga da dupla.
-
Buenas seu Floribal, é macanuda esta pura, mas nós “bâmu amontá” nos cavalos e
“bâmu” dar uma olhadita aí pelos “peráu”, momento em que fez menção de pegar na
guaiaca algumas moedas de contos de réis.
-
Como os policiais estão a serviço - disse Floribal - a caña fica por nossa
conta. Afinal, tratam-se de homens “macanudos” que estão sempre aí nos
protegendo de algum “maleva” que por ventura venham a atazanar nossas vidas.
-
Buenas, se é assim ficamos agradecidos, mas “bâmu simbora”, pois “temu” que
“campiá” esse “turco” - disse um dos policiais.
Bateram
com os tacos dos borzeguins, numa saudação de milico, e cadenciados foram
soando os calcanhares no chão de tábua e foram se aproximando da
porta de saída, onde a sombra dos cinamomos dois haraganos bem “aperados”
manoteavam, de orelhas murchas devido ao calor que fazia.
Ao
chegarem à porta, com uma repentina mudança do vento, que de rebojo bateu, os
policiais sentiram no ar o aroma de carne sendo assada, pararam, viraram-se e
um deles enrugando as sobrancelhas desgrenhadas perguntou a Floribal, que
estático deu uma levantada de cabeça sentido também o cheiro de carne queimada:
- Está assando uma “carnezita” de
ovelha, seu Floribal, cuide lá, pois ela deve estar queimando.
Minha
bisavó antecipando-se ao marido, pois era muito atilada e despachada foi logo
dizendo:
-
É um pedacito de capão, mui pequeno, mas que vai dar “pro” nosso almoço. E
completou, mas se os senhores quiserem almoçar, eu dou um jeito na bóia.
-
Não, dona Maria, disse o policial de bigodes, nos vamos “continuá” a “procurá”
o caixeiro. Voltaremos assim que puder. Aí quem sabe a gente come uma carne,
daquelas “buenas” que a senhora sabe preparar.
E
se foram escarranchados em seus cavalos, ao passo, sentindo aquele cheiro de
carne sendo, na verdade queimada, e jamais desconfiaram que aquele casal, mais
conhecido pelas cercanias do que guanxuma poderia ter alguma coisa a ver com o
desaparecimento do caixeiro viajante.
Jamais
apareceu pelas redondezas qualquer outro policial a procura do habibi,
entretanto o “causo” rendeu muita conversa e muitas delas contadas pelos
“chucos” encostados no tosco balcão daquele bolicho ou mesmo por
caixeiros viajantes que sempre traziam novidades, e sobre o caso contavam as
histórias mais disparatadas no meio da “biguanada”, que ouvia atentamente, já
que tudo era bom para matar o ócio num lugar tão solito e abandonado no meio do
nada.
Certa
vez minha bisavó confidenciou para as filhas, Idelvira, minha avó e Anália, se
caso os brigadianos quisessem almoçar, ela de certo escolheria um bom pedaço
que ainda não havia sido queimado do mascate, temperaria bem e serviria aos
brigadianos como sendo carne de ovelha.
E adelante se vai o tempo,
despacito como mula de olaria, meio no tranco, mas que passa sem a gente
sentir.
Caro prof. Pedro Teixeira: que conto real fantástico! Primeiro, pela sua bela forma de narrar, algo que é um dom invejado por muitos historiadores. E segundo, pela peculiaridades do relato. Casos envolvendo mulheres e criminalidade são raros. A Dona Maria Emilia era realmente "faca na bota", não? rsrsrs Digno caso de horror, de um lugar e uma temporalidade únicas. Uma das melhores leituras que já fiz sobre o gênero.
ResponderExcluirDesejo-lhe um feliz ano novo, com muita saúde, paz e sucesso nas empreitadas da vida. E assim que sair seu livro de memórias, já reserva, por gentileza, um exemplar para eu adquirir. Abração!
Bom dia meu caríssimo Dário.
ExcluirQue a saúde e alegria sejam constantes em tua vida.
A bisa Maria Emília viveu numa época de atraso e as rixas eram resolvidas no simbronaço do facão ou no trovejar das armas. Ela sempre foi muito introspectiva, poucos amigos e muito dura na educação das filhas ou dos netos, mas careceu de estudo era uma mulher sem muita cultura, como era o povo daquela época, porém muito atilada. Mas viveu muito e morreu de morte natural. Sua vida e seus feitos foram muito escondidos, pois ninguém ousava falar. Com a sua morte muitas histórias vieram à tona, mesmo assim contadas baixinho para que outros não as ouvissem. Lamento que muitas histórias não chegaram a meu conhecimento e o arquivo humano que era minha amada Tia Maria Rafaela foram-se quando ela faleceu aos 98 anos, lúcida como ninguém.
Fico realmente honrado com tuas palavras de reconhecimento, faço o possível para ser mais fiel possível.
Meu caríssimo Dário terei o maior prazer em enviar um exemplar de meu livro o que está difícil de terminar, pois sempre há alguma coisa a ser introduzida. Minha filha que é Historiadora está disposta a editá-lo caso eu não possa. kkk! Nunca se sabe.
Um abraço do tamanho do Rio Grande e que tenhas um belo Natal e um Ano Novo repleto de alegrias e saúde.