Taita, Eu Tenho Dente.
Esta história que passo a
contar é mui conhecida na Campanha Gaúcha, onde os guascas contam como um caso
verídico.
No ano de 1956, esta me foi
contada pelo amigo de mesma idade chamado João Barbosa da Silva, o Joãozinho da
Dona Marina, em frente a casa em que morava, na Rua Álvaro Chaves 413, em
Pelotas.
E nos anos 90, adquiri um
livro editado em Cuba, sobre mitos e fiquei impressionado que, com outras
palavras essa mesma história era contada como se fosse um caso ocorrido naquele
país caribenho.
Vamos a história para que
ela não caia no esquecimento.
A noite se fazia escura como
breu. A brisa quente soprava anunciando uma mudança de tempo.
À frente a estrada se
estendia sem fim, como uma longa corda de viola cortando as coxilhas, sendo apenas
percebida em leves nuances marcados pela luz esmaecida da Lua meio escondida
entre nuvens pesadas.
Trocando as orelhas ia ao
rumo o baio cheio de regulamentos, que nas noites ficava mais atento aos
ruídos, e se ia ao passo lento.
O cavaleiro monarca estava
também mais atento que um caburé, pitando seu “paiêro” que se consumia a cada
tragada e seu lumo desaparecia de vereda sob aquela brisa que soprava mansa
como um sorro.
Muitos pensamentos
aterradores passavam em sua mente, mas sem medo ia o “bacudo” em frente com seu
flete ao passo.
Ao passar por um capão de arvores
escuro, que cobria a estrada, o cavalo meio “negaceou” o tranco, trocou várias
vezes as orelhas, levantou a cabeça e bufou.
O ginete segurando firme as
rédeas afinou o ouvido, mas levemente esporeou o baio, que mais desconfiado do
que gato em casa nova continuou em seu
tranco, sestroso e todo espiado.
A brisa trocou de rumo e
trouxe em seu bojo um ruído estranho que fez com que o cavaleiro sentisse um
arrepio que lhe desceu pelas costas como brasa.
Mas como era um taura
destemido, bateu o chapéu na testa e sua mão sestrosa buscou instintivamente a
adaga, sua fiel companheira.
Pensou que em qualquer
situação o ferro branco perto da mão seria mais uma segurança naquela noite
negra.
Num repente ouviu o que
parecia um choro de criança. Puxou levemente a rédea e observou o trocar de
orelhas do velho companheiro bem aperado.
Novamente ouviu mais próximo
aquele gemer de um recém-nascido.
Espantadiço o cavalo quis
empinar, mas o destemido cavaleiro fez com que o aporreado continuasse em seu
tranco.
Mais alguns metros o “alimal”
estancou nas quatro, e não havia nada que o fizesse andar.
O cavaleiro soltou levemente
a rédea com a mão esquerda enquanto que com a destra desembainhava o longo
talher de briga. E atento olhou para a escuridão sem nada enxergar.
No silêncio que se fazia,
cortado apenas pela brisa que assoviava no arvoredo deixava mais tenebrosa
aquela conhecida carreteira de tantas e tantas andanças.
Cavalo e cavaleiro parados,
ouvidos afinados, quase não respiravam, numa indecisão aterradora.
Nesse momento um choro forte
se fez ouvir ao lado esquerdo da estrada, em uma pequena encruzilhada com um “caminito”
que se perdia no campo.
O “alimal” mais uma vez
bufou e levantou as patas dianteiras, batendo a cabeça insistentemente ensaiou
uma disparada, porém rapidamente foi contido pelo hábil ginete.
O choro continuava, e só
podia ser uma criança abandonada.
O cavaleiro preocupou-se e
levemente apeou, já com a adaga em guarda e segurando firme a rédea chegou para
o lado “donde” vinha aquele choro de recém-nascido.
Entre a relva alta, junto a
uma cerca encontrou ele enroladito em panos velhos uma recém-nascida criança.
A dó lhe partiu o coração. E
ali não deixaria aquela infeliz vida abandonada ao tempo ou as feras.
Em um movimento suave
enrolou a rédea no braço esquerdo para que o bagual não disparasse, e
agachando-se e em seus braços segurou aquela vida condenada a própria sorte.
O cavalo meio espantadiço
negou estribo várias vezes, mas o taura era também cheio de regulamento e falou
firme com o “alimal” que se aquietou a contra gosto.
Montou com a criança no colo
e se foi estrada a fora.
Mui longe avistou uma tênue
luz no meio do campo. Era o rancho de uma velha bugra curandeira, cheia de
poderes de curas e previsões.
Pensou ele em lá chegar e
deixar com ela aquela criança que a lá cria estava condenada a viver, solita
como ovelhas guaches dos campos frios do sul.
Seguiu de ponto fixe seu
caminho, ouvindo o nada que temperava sua vida dura.
Nesse momento de total
silêncio e esquecido das coisas, ouviu aquela voz rouca que vinha do recém-
nascido:
- Taita, eu tenho dente.
Num susto violento o
cavaleiro firmou os olhos e o clarão da Lua que acabara de furar as nuvens iluminou
o rosto daquela criança com poucas horas de vida.
Num espanto o homem viu que
da boca da criança dois enormes dentes se projetavam por cima do lábio inferior
e seus olhos vermelhos pareciam faiscar.
Assustado, num pavor sem
igual o taura jogou a criança na estrada e esporeando o cavalo sumiu no upa e
upa, naquela estrada.
Foi parar somente no rancho
da índia curandeira, e ao chegar gritou cortando a noite, com o coração
saindo-lhe pela boca:
- Ô de casa! Ô de casa!
A velha bugra abriu a porta,
e a luz fraca de um candeeiro lançou no terreiro sua sombra longa e
assustadora, e com seu cachimbo fumegando disse sem nada perguntar ou ouvir.
- Mas che! Tu também
encontraste “o coisa” ruim dos dentes grandes.
O homem pasmo, nada disse,
empinou o cavalo e sumiu a todo galope naquela noite e nunca mais foi visto
pelas redondezas.
À porta do rancho ficou a
charrua balançando levemente sua cabeça de longos, e finos cabos brancos soltos
sobre os ombros esquálidos.
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