Quando trabalhava na
Primeira Seção do então 9º Regimento de Infantaria, em Pelotas, muitas
histórias fui coletando, afinal de contas nesta seção trabalhei por cinco anos
e nada passava batido.
Houve uma época que foi
chefiar essa Seção um Capitão buenacho barbaridade, um taita de primeira, tanto
que ascendeu ao posto de General num vu.
Era um homem educado, sério,
enérgico quando precisava e amigo dos subordinados, e todos, Sargentos e Cabos
daquela Seção o admiravam muito. Um homem que se dissesse a seus subordinados
que iria para o inferno, todos o seguiriam sem titubear.
E por seus subordinados
comprava a camorra e não queria saber, fosse com quem fosse e sempre dizia:
- Aqui dentro nos podemos
ter nossas diferenças, mas da porta para fora se tiver que brigar, vamos
brigar, mas vamos brigar juntos.
E todos ali, na pausa para o
cafezinho ficavam juntos ao capitão proseando sobre o serviço e também sobre
outros causos.
O Rancho do Quartel não oferecia
café ou quando o fazia não era muito apreciado. Para suprir essa necessidade
tão importante da vida do povo brasileiro, resolvemos dentro da Seção comprar o
nosso próprio café, que era feito ou no Bar do alemão Udo, que ficava em frente
ao quartel, ou em um bar do Salton que lindava com o muro do Regimento, no seu
lado direito.
Esse Capitão era um Oficial
tão especial que entrou no entrevero do café. E mais pagava do que bebia, mas
se divertia com as constantes discussões de “quem vai pagar”.
Obvio está que essas
discussões eram mais um chiste do que “as ganhas”. Assim ia mantendo a alegria
junto ao trabalho sério e profissional.
Porém como esse café cada
dia um é que pagava, na hora de mandar comprar era aquele alvoroço.
- Mas tche. Quem vai comprar
o café.
E um já dizia:
- Hoje é dia do Cabo Bruno
pagar.
Era o mais moderno e sempre
levava o pênalti.
O Cabo Bruno ficou esperto e
já ia empurrando a vez e saltava fora dizendo:
- Não! Não! Hoje é o Cabo Teixeira.
Putz grila, já me botaram no
meio do entrevero, então eu já ia rebatendo:
- Que nada! Hoje quem paga é
o Sargento Rode.
E esse por sua vez,
arrumando o Rayban e retrucava:
- Não! Não! De novo eu, não!
E depois de muita charla e
buchincho se acertavam e alguém pagava numa boa, sem estresse, na camaradagem,
coisa que sempre fora a tônica daquela Seção.
No outro dia a mesma coisa
acontecia, e começavam a discutir para saber quem pagava, e um já dizia.
- É o Teixeira, ele se
esquivou ontem e o Sargento Adroaldo é que acabou pagando.
E eu lá do meu canto já
soltava o verbo:
- Não! Hoje quem paga é o
Capitão.
E todos concordavam e o
Capitão sem muito xaraxaxá já metia a mão na guaiaca e de vereda mandava um
reculuta comprar o tal café.
Os Soldados que a cada dia
eram substituídos para o serviço de “chasque”, dois por dias não pagavam o
café, e tomavam a vontade. Só os graduados e o Oficial eram os que arcavam com
a despesa.
E no outro dia novamente era
aquele empurra-empurra.
- Como é que é Teixeira,
quando vais pagar o café.
- Mas Sarja, eu paguei ontem.
- Negativo! Quem pagou ontem
novamente foi o Capitão.
- Mas se o Capitão pagou uma
que pague duas vezes e ficamos acertados.
- Negativo. Negativo. Hoje é
tu que vai pagar. Só fica na moita.
- Por que eu se o Cabo
Acosta ainda não pagou?
- Mas o Cabo Acosta pagou
duas vezes a semana passada.
- Tá bom! Tá bom! Eu pago.
E relancina já mandava um
reculuta comprar o café, mas recomendava bem.
- Vá lá no Udo. É o melhor
café.
Todos pagavam e todos
ficavam satisfeitos e alegres, e com isso o grupo cada vez mais ia se unindo.
Unha e carne.
Corda e caçamba.
Era um ambiente de
camaradagem, onde todos trabalhavam feito doidos para dar conta do serviço e
cada um dentro da sua característica formava naquela Seção um marco de amizade
e solidariedade.
Muitas vezes o serviço era
tanto que eu era dispensado dos Serviços Gerais e da própria formatura diária,
dando apenas o serviço de Sargento de Dia, e antes de clarear o dia, muitas
vezes antes da Alvorada, quando o Quartel em silêncio dormia eu já estava em
minha mesa e dê-lhe máquina, chegando a datilografar em apensas um dia mais de
30 matrizes (folhas), para o Boletim.
Mas a brincadeira do
empurra-empurra continuava e até o capitão levava aquilo como uma maneira de
fortalecer os vínculos de camaradagem, pois sabia bem que tudo era uma forma de
tornar o ambiente agradável e isto era o que valia. Foi o melhor ambiente de
trabalho que tive em minha vida, até que uma sombra taciturna chegou para
trabalhar naquela Seção.
Certa feita houve a troca do
Sargento Ajudante. Saiu um pau-ferro, também taita que fora promovido a
Subtenente e em seu lugar foi um Primeiro Sargento que era antipatizado por
quase todos dentro daquele quartel. Dos mil e tantos militares que ali serviam
pouco eram os que tinham por ele alguma simpatia, mesmo que falsa, coisa já
relatada neste blogue.
No momento em que ele foi
para a Primeira Seção, as coisas degringolaram, e o ambiente de camaradagem
acabou e todos andavam descontentes com aquela presença nefasta.
Mesmo antes de ir para essa
Seção, o maleva já havia conquistado a antipatia de quase todos. Êta sujeitinho
asqueroso, que em seu segundo contato com aquele grupo, logo que chegou ao
quartel e assumira a Sargenteação da Primeira Companhia de Fuzileiros, indo até
a Primeira Sessão tratar de assunto de serviço, foi extremamente arrogante,
grosseiro e debochado com um jovem, quase menino Terceiro Sargento que ficara
pouco tempo nesse Setor.
No outro dia tentou fazer a
mesma coisa comigo e levou nos dedos, tanto de mim que era um simples Cabo, mas
Cabo velho e escolado como do Capitão que ao ouvi-lo arrogante chamou o maleva
na cincha, que saiu dali e foi direto para o sol secar a mijada que recebera.
Na Primeira Seção, tão logo
tomou pé do ambiente, sendo um dos mais elevados Sargentos por graduação e
antiguidade no regimento passou a por as manguinhas de fora. Havia no Regimento
quatro Primeiros Sargentos mais antigos do que ele, porém esses estavam
ocupando funções de Subtenente, inclusive o da minha Companhia, a 4ª de
Fuzileiros, chamado Maciel.
E já na primeira
oportunidade, ao ver em uma manhã a discussão para a compra do café, foi de
enxerido se metendo e querendo dar um basta naquela hilária confraria do café.
Ao ver o emprurra-empurra
que era feito só por brincadeira, foi logo ordenando.
- Silêncio!
Todos pararam de falar,
momento em que o Capitão não estava na Seção e foi impondo.
- Isto é uma confusão, é
todo o dia esta ladainha. A partir de hoje eu vou organizar a compra do café.
Todos se entreolharam,
momento em que o Sargento Rode, do outro lado da Seção me olhou, pois sabia que
eu não simpatizava nadica de nada com esse Primeiro Sargento, e apenas pelo
olhar nos entendemos e eu fiz que não havia ouvido nada, indo para a minha mesa
sem nada dizer evitando assim mais um atrito.
Fiquei só observando o
Primeiro Sargento, o Honorífico, o Brigada do Regimento falar com empáfia e
organizar a compra do café, dizendo:
- Fiz aqui uma relação de
todos os graduados para que de maneira ordeira façam a compra do café.
- Êpa! Disse o Sargento Raul
– E o Capitão vai ficar de fora?
- É verdade. - Disse eu de
meu canto. – O Capitão entra no rateio, sim!
- É aqui não tem essa de por
ser Oficial ficar de fora. Todo mundo entra na divisão – Disse o Sargento Rode
(Rodeghiero).
O Primeiro Sargento ficou
rubro, pois queria agradar o Capitão nas costas dos outros.
E um silêncio assustador
tomou conta do Setor.
O Sargento Ajudante foi até
sua mesa, acrescentou o nome do Capitão e voltou dizendo:
- Tudo bem! Coloquei o nome
do Capitão, mas vou falar com ele para saber se ele quer ou não quer.
Olhei para o Rode, balancei
a cabeça e desembuchei:
- Não tem que falar com o
Capitão. Ele quer e vai pagar. O Capitão não é de ficar em cima do muro. Ele
vai entrar no rateio sim! E vai pagar sim, como qualquer outro.
Bolas!
- Mas Cabo, eu pensei em
agradar a nossa chefia.
- Desculpe-me Sargento, eu
respeito todo o mundo, mas não puxo o saco de ninguém.
Aí foi aquele zum-zum-zum no
ouvido do honorífico, que com ódio me olhava.
Nesse momento adentrou a
Seção o Capitão, na sua maneira despachada, firme e sem rodeios, com meia dúzia
de papéis nas mãos e já de vereda foi distribuído à papelada aos interessados,
cabendo a mim uma ordem de serviço que deveria ser publicado no Boletim Interno
daquele dia, impreterivelmente.
E eu era o datilógrafo do
Boletim Interno.
Todos em silêncio ficaram e
eu fui logo atropelando.
- Capitão. O Sargento
Ajudante está organizando a compra do café e eu, como lhe conheço bem, pedi que
o seu nome fosse acrescentado à lista.
- É claro Teixeira! - Disse o Capitão - Fizeste
bem. Na hora de pagar não tem essa de ser Oficial ou Praça. Todos são iguais.
- E depois, o senhor ganha
bem. - Completei:
Todos caíram na risada, até
o próprio Capitão, mas o Primeiro Sarja ficou com a cara de cadela que lambeu
graxa e mais uma vez vermelho como um
tomate maduro e me fulminou com o olhar.
- Tudo bem - disse o
Primeiro Sargento - então vamos modificar a maneira de adquirir o café. Ao
invés de todos os dias mandar um Soldado atrás de café nós faremos de maneira
civilizada e organizada.
Todos se entreolharam. Este civilizada pegou mal.
E Continuou:
- Doravante faremos a compra
semanal do café, cabendo a cada um a despesa da semana. Compraremos uma lata de
café solúvel, um quilo de açúcar ou mais se precisar e para dar uma melhorada
compraremos leite em pó, assim o nosso café ficará mais nutritivo.
Silêncio sepulcral.
- Como eu sou a Praça mais
antiga e fui eu quem organizou, serei eu o primeiro a comprar os ingredientes,
a iniciar na próxima segunda-feira. – Completou o Sargento Ajudante.
Neste momento eu perguntei:
- Sim, tudo bem. Mas e hoje
quem compra o café?
O Capitão imediatamente
disse:
- Hoje é sexta-feira, o
melhor dia da semana. Então pago eu.
E já foi tirando o dinheiro
do bolso e já mandou o Cabo Morais providenciar o café, tão logo chegassem a
Seção os dois soldados “Ordens”, que serviriam de chasques.
Na segundo feira todos em
seus postos após a Formatura Diária, quando chegou à Seção o Primeiro Sargento
Ajudante, carregando dois pacotes de açúcar, uma lata de café solúvel e duas de
leite em pó.
A água quente viria do
Rancho e dois termos. Dois de manhã e dois à tarde.
Beleza. Fui uma semana sem
incidentes, café com leite quentinho e doce. E todos se fartaram.
Na sexta-feira ainda havia
leite em pó e café, então outros militares de outros setores foram um a um convidados
para saborear o melhor café do Regimento, até gastar a última colher de açúcar,
café e leite.
Terminado o expediente de
sexta-feira, todos se despediram para encarar um belo fim de semana, mas
ninguém falou sobre o assunto, ninguém combinou nada.
Porém...
Na segunda-feira, antes do
início do expediente todos na Seção em volta da mesa do Capitão conversavam
sobre o descanso semanal e como o capitão e eu viajávamos todos os fins de
semana para Porto Alegre o assunto rendeu, quando a essa Seção chegou o
Sargento Ajudante, não sei por que era sempre o último a chegar, saudou o
Capitão com a tradicional continência e todos que ali estava a ele também
saudaram militarmente.
Foi até sua mesa e pegou em
uma gaveta a relação rigorosamente por ordem de antiguidade, deixando apenas o
Capitão como o último da lista.
Baita puxa-saco e
caborteiro.
- Pessoal! – Disse ele – O
próximo da lista, por antiguidade é o Segundo Sargento Raul.
Virando-se então para esse
Segundo Sargento perguntou:
- O Senhor trouxe os ingredientes
para o café?
Ninguém, como disse havia
combinado, mas todos se conheciam muito bem.
O Sargento Raul respondeu:
- Olha pessoal! Eu não
trouxe o café e não quero mais participar deste rateio. Estou fora.
O Sargento Ajudante meio
perdido, ficou embasbacado e disse:
- Então o seguinte da lista
é o Sargento Rode.
Esse por sua vez era também
pau-ferro disse que não participaria mais do rateio, e assim um a um até chegar
ao Cabo Bruno que era o mais moderno, foram retirando seus nomes da lista,
esvaziando a festa.
O Capitão surpreso ficou só
observando a puxada de tapete que todos deram no Primeiro Sargento, pois no
fundo o Capitão sabia que ninguém topava a cara daquele alcaide.
Orre tasca.
O Sargento Ajudante foi o único a pagar.
Mas não aprendeu e levou
duas outras belas bordoadas naquela Seção, uma já relatada neste blogue, fora
punições que sofrera durante todo o seu tempo de Exército. Somente o meu pai,
no inicio dos anos 50 havia dado duas puadas nele quanto esse ainda era Cabo e
meu pai era dele Sargenteante. Por esse motivo tanto me odiava.
Resumindo, o Capitão taita macanudo
conseguiu junto ao Comando da Unidade que o rancho fornecesse o café não só
para a Primeira Seção, como para outros setores, já que muito café sobrava no
Rancho após o desjejum da tropa.
Tem gente que precisa levar
na cabeça para aprender, mas muitos como esse jamais aprenderão.
Glossário Gauchês.
Reculuta: - Recruta
Pau-ferro - Amigo do peito. Fiel. Que está sempre contigo nas boas e nas más horas.
Chasque - Mandalete, Guri de recado. Office boy
Taita - Valente. Destemido.Guapo.Altaneiro.Disposto.
Puada - Golpe. Pancada. Sentar a pua.
Orre Tasca - Expressão de contentamento, quando alguém se dá mal.
Macanudo - Vem de bacana. Bom. alinhado.
Alcaide - Imprestável. Despresível. Sem Valor.
Compra Camorra: Comprar uma briga. Reagir a uma provocação.
Caborteiro - Velhaco. Mentiroso. Tratante,Má índole.
Termo - Garrafa térmica.
Glossário Gauchês.
Reculuta: - Recruta
Pau-ferro - Amigo do peito. Fiel. Que está sempre contigo nas boas e nas más horas.
Chasque - Mandalete, Guri de recado. Office boy
Taita - Valente. Destemido.Guapo.Altaneiro.Disposto.
Puada - Golpe. Pancada. Sentar a pua.
Orre Tasca - Expressão de contentamento, quando alguém se dá mal.
Macanudo - Vem de bacana. Bom. alinhado.
Alcaide - Imprestável. Despresível. Sem Valor.
Compra Camorra: Comprar uma briga. Reagir a uma provocação.
Caborteiro - Velhaco. Mentiroso. Tratante,Má índole.
Termo - Garrafa térmica.
Honestidade:
Cada pessoa tem seu grau de honestidade.
Muitos viram no primeiro quadro um Cabo tirando o dinheiro
do bolso do outro.
Porém no segundo quadro o dinheiro continua no bolso.
Ou seja, quem tem o conceito de
honestidade elevado viu que o Cabo não está tirando o dinheiro do bolso do
outro, e sim discretamente está colocando o dinheiro, pois o segundo
deveria pagar o café, mas estava sem dinheiro, o primeiro, por ser camarada discretamente colocou o dinheiro no bolso do outro, para evitar o
constrangimento do amigo.
Assim é que funcionava.
Porém sempre a maioria vai ver o
mal nas coisas e nunca o correto, pois vai se colocar como vítima ou falcatrua.
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