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sexta-feira, 15 de janeiro de 2016

A Morte de Sentinela


Volta e meia, deixo de lado as broncas que me levam a ficar mais zangado do que gato na soga e resolvo escrever de carreirinha sobre coisas amenas de minha vida de mandinho. Coisas que eu guardo bem claras em minhas lembranças, tão claras que me parece estar ocorrendo neste exato momento. Coisas outras, de um mundo que começava a se descortinar para um piá de sete anos.


Em determinada noite de Lua cheia, lá pelo ano de 1953, papai, índio despachado, “milito” que na época era Segundo Sargento do Exército, resolveu atravessar os campos que iam de nossa casa até a Estrada Pinheiro Machado, pouco mais tarde chamada de Avenida.

A Pinheiro Machado era uma carreteira de terra amarelada que lindava as áreas pertencentes ao Parque Souza Soares a norte e os campos  de uma antiga olaria ao sul, deficitária e em vias de encerramento de suas atividades.


O Parque, apesar de em sua época áurea ser um fleumático local de passeios já se encontrava decadente. As cabriolets, traquitanas e faytons que por ali circulavam puxadas por belos cavalos mais bem alimentados do que a maioria de nosso povo dava beleza e alegria aos fins de semanas, por aonde família tradicionais passeavam mostrando toda a sua pompa e tradição, mas com a decadência da cidade o parque também tornara-se decadente, um lugar ermo, bucólico.

A carreteira Pinheiro Machado, com no máximo quatro ou cinco casas espraiadas por légua de queixo, sem contar o Colégio na esquina da antiga Avenida Daltro Filho, hoje chamada de Duque de Caxias, um General de linha dura que andou entreverado num punhado de bochinchos, como na Guerra contra o Paraguai, havia atrás dessa escola, chamada Grupo Escolar Mariana Eufrásia, um posto policial da Briosa, chamado de Quarto Posto Policial, onde por algum tempo o Sargento Florduardo Thomaz foi o seu Comandante. Ele possuía uma penca de filhos e filhas, que a gente nem conhecia, mas que as voltas da vida iriam juntar as pontas quando minha irmã mais nova veio a casar-se com o hoje Coronel Flordemar de Oliveira Thomaz, filho mais velho desse, então Sargento.

Neste Posto havia um xilindró, onde os mata-cachorros enjaulavam certos malevas, borrachos e caborteiro.


E foi neste Posto que Vovô Garcia numa manhã de domingo amontoou a pau três alcaides que queriam se evadir do local, quase os matando com um camboim que um brigadiano havia deixado cair ao chão quando da refrega com os presos.

Mas naquela noite que estava mais clara do que água de vertente, e toda a família andava por uma trilha aberta pelos pés dos bacudos que por ali atravessavam para chegarem à vila Caruccio ou à Gotuzzo e que por ali também cortavam caminho até chegarem ao Parque Souza Soares, belo e requintado local onde havia até uma academia de halteres, onde jovens meio biguanos e simplórios nos fins de semanas iam exercitar seus esquálidos músculos, já que se tratava de um povo nanico e tão magro quanto um galgo.

Mamãe de braços dados caminhava folheirita ao lado de papai, que mais faceiro do que guria de vestido novo, falava alto e cuidava atento as duas filhas, uma de 14 e a outra de 4 anos que mais a frente caminhavam de mãos dadas.

Como sempre papai andava com seu boca-de-sino empanturrado de azeitonas, pronto para, se fosse necessário trovejar estanho em algum maleva que aparecesse no meio daquele campo escuro e desolado.

Meu irmão Joaquim e eu caminhávamos bem atrás conversando coisas de piá, já que ele tinha quase 10 anos e eu contava com apenas 7 aninhos.

Ia eu contemplando ao longe aquela renque de eucaliptos escura e pouco visível, emoldurado pela luz da encantadora Lua, e que a cada passo ficava mais perto, por onde passaríamos uma estreita porteira que dava a entrada para o tal parque.

Dali teríamos mais uma légua-de-beiço até chegar a casa de vovó, no meio do nada.

Ao chegarmos a sua casa, já que era noite escura, foi aquela surpresa, quando vovó muito algariada correu para apertar, afofar e beijar os netos.

Vovô Garcia, meu amado vovozinho, amigo e sempre disposto a uma brincadeira correu também meio surpreso e veio nos cumprimentar.


Pouco tempo ficamos na casa de Vovó, mas quando, após uma hora de visita, despedíamos, vovô Garcia, homem corpulento, alto e forte ensaiou uma corridinha e sumiu ao lado de uma cocheira e de lá voltou com dois belos jaguaras à soga.

E de prontito foi dizendo que o baio era de meu irmão Joaquim e que o tubiano preto e branco era meu.


- Êba! Êba, agora tenho um cachorro bonito e esperto. – Disse eu tapado de emoção.

Ao voltarmos para casa, Joaquim e eu íamos bem à frente, afinal estávamos protegidos por dois belos cachorros.

Na época não havia esta profusão de “marcas” de cachorros e para nós não passavam de apenas cachorros.


O que eu havia sido presenteado por Vovô Garcia era muitíssimo parecido com um Border Collie, e duvido que não fosse, pois era esculpido em Carrara (*) um Border Collie.

Ao chegarmos a nossa casa não houve nem tempo de brincar com os belos jaguaras, mamãe botou todos na cama, pois já era muito tarde.

Para deixar os cachorros bem protegidos, papai os colocou em uma peça que havia grudada feito carrapato nos fundos da cozinha, com uma porta lateral para um pátio interno onde vivíamos brincando.

Esta peça da casa servia como depósito de algumas tralhas e era de chão batido e que muitas vezes serviu de abrigo a um ou a outro parente desguaritado e onde também brincávamos raras vezes, geralmente mamãe mantinha aquela porta fechada.

Dormimos o sono dos deuses e obviamente sonhei com os belos vinagres.

Na manhã seguinte, papai foi soltar os cachorros e para nossa surpresa e tristeza o meu cachorro, que Vovô Garcia havia batizado com o nome de Sentinela estava morto.

Não havia ainda me aquerenciado com o bicho, mesmo assim fiquei muito triste.

E uma pergunta ficou em suspenso. De que havia morrido aquele forte e bem nutrido alimal?

Papai naquele momento nada falou, retirou o outro cachorro da peça, amarrando-o no pátio do outro lado da casa e munido de uma pá e enxada cavou no fundo do terreno uma cova onde sepultou o belo cachorro.


Mais tarde brincando perto da cozinha ouvi papai dizer para mamãe que o jaguara havia sido picado por uma jararaca.

Neste mesmo dia papai passou uma varredura em todos os cantos prováveis daquela peça e nada encontrou, mas por precaução proibiu por uns dias a nossa entrada naquela escura peça, que só tinha uma porta e nenhuma janela.

Ficamos com apenas o cachorro baio que meu irmão o batizara de Amigo, que foi nosso companheiro por dois anos, morrendo também de causa não sabida, mas associada à morte de Sentinela.

E nós, pias algariados vivíamos correndo pelo pátio do fundo da casa que era um enorme pajonal e por onde jararacas e outra peçonhentas deveriam dividir o espaço com nós, crianças levadas e meio biguanas, mas sobrevivemos.

Explicação: Escrevi acima a frase "Esculpido em Carrara", esta é a maneira correta de dizer que alguém é a cara do pai ou da mãe, entretanto por ignorância as pessoas usam dizer "Cuspido e Escarrado".
Carrara na Itália notabilizou-se por seus mármores onde artista esculpiam bustos e estátuas incrivelmente semelhantes às pessoas homenageadas, por isto deve se dizer Esculpido em Carrara.


Traduzindo para os brasileiros e outros estrangeiros.

Alcaide - Imprestável, sem serventia. (tipo nojento que a Maria do Rosário gosta de chamar de vítima e que meu pai chamava na bala)
Algariada – Agitada, alvorotada.
Alimal - Animal
Bacudo – Homem sem instrução e sem trato social.
Biguano – O mesmo que Bacudo.
Boca-de-sino – Revólver.
Borrachos – Bêbados.
Brigadiano: Militares da Brigada Militar que só existe no RS, no Brasil chamam de Policia Militar.
Briosa - Maneira carinhosa com que os Gaúchos chamam a Brigada Militar.
Caborteiro – Velhaco, mau, esperto, trapaceiro.
Camboim – Madeira dura e resistente, cassetete.
Carreteira – Estrada.
Desguaritado – Sem moradia, desprotegido.
Entreverado – Misturado.
Folheirita – Fácilmente, sem percalços
Jaguara - Cachorro
Légua-de-beiço – Distância pequena, logo ali.
Légua-de-queixo – Distante, longe, mais longe do que légua-de-beiço.
Maleva – Mau, bandido.
Mandinho – Gurizinho. Menininho. Piá.
Mata-cachorro – Por algum tempo os brigadianos (RS) foram chamados de mata-cachorro.
Milito – Milico - Soldado
Pajonal – Macegal (Pronuncia-se parrônal).
Piá – O mesmo que mandinho, Piá para os charruas e minuanos quer dizer coração.
Vinagre – Cachorro vira-lata.












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