Lá pelas canhadas dos anos
50, nas bibocas em que vivia lá no meu rincãozito arrabalero do Fragata, havia
uma pulperia na esquina da Rua Afonso Pena com a Primeira Entrada, a légua de
beiço da antiga Avenida Daltro Filho, cerquito de nossa casa.
Era um velho bolicho, de
chão batido e surrado balcão de tábuas carcomidas pelo tempo, onde alguns
borrachos passavam horas proseando e enchendo as fuças de canha buenacha, e
volta e meia saiam do balcão para o vendeiro poder atender alguns raros clientes
que entravam em sua venda mais acanhada que guria biguana em festa de casamento.
Nesta pulperia vendia-se de
tudo, (se tivesse) e onde se comprava as cousas a granel (se tivesse).
Feijão, arroz, farinha e até
açúcar, açúcar grosso e tão sujo quanto esses políticos calaveiras que infestam
nossas Câmaras, Casas Legislativas e Congresso, eram vendidos por quilo ou por
gramas, tirados diretamente de sacos ou das tulhas de madeira ou barris e
pesados em balanças caborteiras que afanavam em favor do vendeiro, que também
era um pobre diabo, miserável igual ao povo, que muitas vezes acertava os
pratos da balança com o dedo, e sempre a seu favor.
Mas o povo bacudo e
abichornado pela situação de extrema miséria, pouco botava tento, pois as
compras eram de pequena monta o que mascarava a careza.
Porém de grão em grão a
caderneta ia se enfarando e ao chegar o fim do mês muitos não tinham como
acertar, pois com as guaiacas mais vazias do que cabeça de pingunchita
algariada, ficava difícil de cumprir com os compromissos. Mas cumpriam mesmo
tendo que apertar daqui e dali ou dar uma gauderiada junto a amigos e parentes
para conseguir unas platas emprestadas. Mas o que valia era o fio do bigode.
E a coisa era meio na
confiança. Porém confiar no vendeiro era uma temeridade. Era como confiar no
gato para cuidar do peixe.
Havia um bolicheiro na
Avenida que ficava com as cadernetas em seu quiosque, e a cada semana colocava
em todos os cadernos “um pão cacete e um litro de leite”.
Quando chegava o fim de mês,
o povo ia acertar as contas e aquele que reclamasse de alguma anotação ele
prontamente riscava sem delongas e dizia com a maior cara estanhada que não
seria por um pão que iria perder um freguês tão bom e honesto, mas os outros
não se davam por conta e de quase todos ganhava vário pães e vários litros de
leite.
Lembrando que a indiada era analfabeta,
pois a esmagadora maioria, quase que 80% da população não sabia juntar as
letrinhas, muito menos decifrá-las.
Lembro que pelo ano de 1955
minha irmã mais velha, com quinze anos, foi até a Loja Velocino Torres,
juntamente com minha mãe, pois ela queria trabalhar e ter o seu dinheirinho.
Ao preencher a ficha o dono
da Loja boquiaberto disse à minha mãe:
- Dona Maria, essa menina
era para trabalhar em algum banco, pois ela tem muito mais instrução do que eu
que sou o dono da Loja.
Era muito estudo, já que minha
irmã havia se formado há dois ou três anos no 5º ano primário.
Era realmente um país
surreal, onde os bacudos não tinham a menor ideia do que ocorria no próprio
potreiro.
Mamãe um dia me deu um copo
e disse para que eu fosse ao bolicho do Tuco-Tuco comprar meio copo de azeite
puro de oliva. E lá fui eu todo empolado.
- Bom dia seu Tuco-Tuco,
minha mãe quer meio copo de azeite.
E ai o bolicheiro pegou a
lata de azeito Sol Levante e mediu meio copo a olho daquela preciosidade
dourada e anotou no caderninho, “meio copo de azeite”.
Era tudo no mais ou menos.
Mas geralmente era para menos.
Hoje esses alcaides vivem
reclamando de tudo, até da saúde. Naquela época a saúde era precária e o que se
tinha eram os chás e as rezas, como se reza adiantasse alguma coisa. Tanto que
a maioria das crianças morria antes de completar um ano. Era comum os piazitos
morrerem antes mesmo de aprender a andar, mesmo com muitas rezas e promessas à Tupanci.
O povo baiquara achava que
tudo era um projeto de um patrão velho que vivia bisbilhotando a vida dos
outros, castigando por qualquer coisa. E até hoje a maioria ainda acredita
nessa fábula. Pelo menos deixaram de acreditar em mula sem cabeça, saci Pererê,
e mboitatá, apesar de ter por ai uns caborteiros ladinos que vivem botando nas
ideias dos pobres biguanos que é assim, e que existem mesmo essas coisas de
outro mundo e que um velho de barbas brancas como velo, vive bispando a vida de
cada vivente, para que na hora da morte possa apartar as almas em potreiros
diferentes. Ou este maleva não tem o que fazer ou é um baita enxerido e
fofoqueiro.
Penso eu, que só existem os
calaveiras é porque existem muitos baiquaras trouxas que vivem pedindo para
serem empulhados e lesados. Lesados são das catracas, que não funcionam bem.
Mas bah! Me tapo de nojo.
Enquanto o povaréu vivia na
maior míngua, numa pindaíba de dar dó, os alcaides que governavam esse país não
ligavam para esse infortúnio, e levavam as coisas meio no manotaço, pois um
país que ainda era governado por coronéis sem patente só poderia ser um atraso
bagual de dar pena.
Esses alcaides ainda mandavam
mais que a própria justiça, coisa que não havia, era um país que quem tinha
mandava e o resto da indiada baixava a cabeça feito terneiro com bicheira e
nada dizia.
Certa feita, quando o retaco
Getúlio pegou o boca-de-sino e trovejou bala no próprio peito, matando-se com
um estanhaço, nesse bolicho que nós chamávamos de venda o povaréu ali reunido,
biguanada de todos os matizes, baiquaras, mambiras e borratchos, comentavam o
trágico desfecho do Getulismo, e eu, mandinho de 8 anos pouco entendia, mas já
contestava em meus pensamentos a bondade desse tal patrão velho lá de riba.
Para mim o pior dos caborteiros que só ajudava os abonados, deixando o povaréu à
míngua.
Tanto que no seguinte ano,
aos nove aninhos de idade rompi de vereda com a igreja.
Meus pais nunca foram de
andar nesses entreveros, onde gente sem esperança, mal amadas, tísicos e meio
abobadas das ideias vivem pedindo e pedindo. Ou pedem coisas materiais ou o mal
dos outros.
Meus pais nunca foram papa hóstias ou decoradores de versículos, e
quando eu briguei com o padre Jorge e desfiz meus tênues laços com a igreja,
meus pais deram de ombros.
Lá no fundo sabiam eles que esse
meio não passava de um confraria de tramposos que viviam e vivem explorando
esse povo que ainda continua mais iludido do que mariposa em volta de
candeeiro.
Os desenhos que ilustram esta matéria são de minha autoria, reservando-se o direito de uso somente ao autor.
Muito interessante texto.
ResponderExcluirOlá caríssimo Monteiro.
ResponderExcluirEntre outras coisas costumo escrever em Gauchês para que também não se perca como muitas coisas de nossa história e folclore. Hoje vejo com tristeza que a gurizada da Grande Porto Alegre e regiões de colonização alemã e italiana não sabem nada deste dialeto tão rico, bonito e único.
Um grande abraço e belíssimo ano que se aprochega meio no atropelo!
Prof. Pedro