Volta e meia, deixo de lado
as broncas que me levam a ficar mais zangado do que gato na soga e resolvo
escrever de carreirinha sobre coisas amenas de minha vida de mandinho. Coisas que eu
guardo bem claras em minhas lembranças, tão claras que me parece estar
ocorrendo neste exato momento. Coisas outras, de um mundo que começava a se
descortinar para um piá
de sete anos.
Em determinada noite de Lua
cheia, lá pelo ano de 1953, papai, índio despachado, “milito” que na época era Segundo Sargento do
Exército, resolveu atravessar os campos que iam de nossa casa até a Estrada Pinheiro
Machado, pouco mais tarde chamada de Avenida.
A Pinheiro Machado era uma carreteira de terra amarelada
que lindava as áreas pertencentes ao Parque Souza Soares a norte e os campos de uma antiga olaria ao sul, deficitária e em vias de encerramento de suas atividades.
O Parque, apesar de em sua
época áurea ser um fleumático local de passeios já se encontrava decadente. As
cabriolets, traquitanas e faytons que por ali circulavam puxadas por belos
cavalos mais bem alimentados do que a maioria de nosso povo dava beleza e
alegria aos fins de semanas, por aonde família tradicionais passeavam mostrando
toda a sua pompa e tradição, mas com a decadência da cidade o parque também
tornara-se decadente, um lugar ermo, bucólico.
A carreteira Pinheiro Machado, com no máximo quatro
ou cinco casas espraiadas por légua
de queixo, sem contar o Colégio na esquina da antiga Avenida Daltro
Filho, hoje chamada de Duque de Caxias, um General de linha dura que andou entreverado num punhado de
bochinchos, como na Guerra contra o Paraguai, havia atrás dessa escola, chamada
Grupo Escolar Mariana Eufrásia, um posto policial da Briosa, chamado de
Quarto Posto Policial, onde por algum tempo o Sargento Florduardo Thomaz foi o seu
Comandante. Ele possuía uma penca de filhos e filhas, que a gente nem conhecia,
mas que as voltas da vida iriam juntar as pontas quando minha irmã mais nova
veio a casar-se com o hoje Coronel Flordemar de Oliveira Thomaz, filho mais
velho desse, então Sargento.
Neste Posto havia um
xilindró, onde os mata-cachorros
enjaulavam certos malevas,
borrachos e caborteiro.
E foi neste Posto que Vovô
Garcia numa manhã de domingo amontoou a pau três alcaides que queriam se evadir
do local, quase os matando com um camboim que um brigadiano havia deixado cair ao chão quando da
refrega com os presos.
Mas naquela noite que estava
mais clara do que água de vertente, e toda a família andava por uma trilha
aberta pelos pés dos bacudos que por ali atravessavam para chegarem à vila
Caruccio ou à Gotuzzo e que por ali também cortavam caminho até chegarem ao
Parque Souza Soares, belo e requintado local onde havia até uma academia de
halteres, onde jovens meio biguanos
e simplórios nos fins de semanas iam exercitar seus esquálidos músculos, já que
se tratava de um povo nanico e tão magro quanto um galgo.
Mamãe de braços dados
caminhava folheirita
ao lado de papai, que mais faceiro do que guria de vestido novo, falava alto e
cuidava atento as duas filhas, uma de 14 e a outra de 4 anos que mais a frente
caminhavam de mãos dadas.
Como sempre papai andava com
seu boca-de-sino empanturrado
de azeitonas, pronto para, se fosse necessário trovejar estanho em algum maleva que aparecesse no
meio daquele campo escuro e desolado.
Meu irmão Joaquim e eu
caminhávamos bem atrás conversando coisas de piá, já que ele tinha quase 10 anos e eu contava
com apenas 7 aninhos.
Ia eu contemplando ao longe
aquela renque de eucaliptos escura e pouco visível, emoldurado pela luz da
encantadora Lua, e que a cada passo ficava mais perto, por onde passaríamos uma
estreita porteira que dava a entrada para o tal parque.
Dali teríamos mais uma légua-de-beiço até chegar a
casa de vovó, no meio do nada.
Ao chegarmos a sua casa, já
que era noite escura, foi aquela surpresa, quando vovó muito algariada correu para
apertar, afofar e beijar os netos.
Vovô Garcia, meu amado
vovozinho, amigo e sempre disposto a uma brincadeira correu também meio
surpreso e veio nos cumprimentar.
Pouco tempo ficamos na casa
de Vovó, mas quando, após uma hora de visita, despedíamos, vovô Garcia, homem corpulento,
alto e forte ensaiou uma corridinha e sumiu ao lado de uma cocheira e de lá
voltou com dois belos jaguaras à soga.
E de prontito foi dizendo
que o baio era de meu irmão Joaquim e que o tubiano preto e branco era meu.
- Êba! Êba, agora tenho um
cachorro bonito e esperto. – Disse eu tapado de emoção.
Ao voltarmos para casa,
Joaquim e eu íamos bem à frente, afinal estávamos protegidos por dois belos cachorros.
Na época não havia esta
profusão de “marcas” de cachorros e para nós não passavam de apenas cachorros.
O que eu havia sido
presenteado por Vovô Garcia era muitíssimo parecido com um Border Collie, e
duvido que não fosse, pois era esculpido em Carrara (*) um Border Collie.
Ao chegarmos a nossa casa
não houve nem tempo de brincar com os belos jaguaras, mamãe botou todos na cama, pois já era
muito tarde.
Para deixar os cachorros bem
protegidos, papai os colocou em uma peça que havia grudada feito carrapato nos
fundos da cozinha, com uma porta lateral para um pátio interno onde vivíamos brincando.
Esta peça da casa servia
como depósito de algumas tralhas e era de chão batido e que muitas vezes serviu
de abrigo a um ou a outro parente desguaritado e onde também brincávamos raras vezes, geralmente
mamãe mantinha aquela porta fechada.
Dormimos o sono dos deuses e
obviamente sonhei com os belos vinagres.
Na manhã seguinte, papai foi
soltar os cachorros e para nossa surpresa e tristeza o meu cachorro, que Vovô Garcia havia
batizado com o nome de Sentinela estava morto.
Não havia ainda me
aquerenciado com o bicho, mesmo assim fiquei muito triste.
E uma pergunta ficou em
suspenso. De que havia morrido aquele forte e bem nutrido alimal?
Papai naquele momento nada
falou, retirou o outro cachorro da peça, amarrando-o no pátio do outro lado da
casa e munido de uma pá e enxada cavou no fundo do terreno uma cova onde
sepultou o belo cachorro.
Mais tarde brincando perto
da cozinha ouvi papai dizer para mamãe que o jaguara havia sido picado por uma jararaca.
Neste mesmo dia papai passou
uma varredura em todos os cantos prováveis daquela peça e nada encontrou, mas
por precaução proibiu por uns dias a nossa entrada naquela escura peça, que só
tinha uma porta e nenhuma janela.
Ficamos com apenas o
cachorro baio que meu irmão o batizara de Amigo, que foi nosso companheiro por
dois anos, morrendo também de causa não sabida, mas associada à morte de
Sentinela.
E nós, pias algariados vivíamos
correndo pelo pátio do fundo da casa que era um enorme pajonal e por onde jararacas e outra peçonhentas
deveriam dividir o espaço com nós, crianças levadas e meio biguanas, mas sobrevivemos.
Explicação: Escrevi acima a frase "Esculpido em Carrara", esta é a maneira correta de dizer que alguém é a cara do pai ou da mãe, entretanto por ignorância as pessoas usam dizer "Cuspido e Escarrado".
Carrara na Itália notabilizou-se por seus mármores onde artista esculpiam bustos e estátuas incrivelmente semelhantes às pessoas homenageadas, por isto deve se dizer Esculpido em Carrara.
Traduzindo
para os brasileiros e outros estrangeiros.
Alcaide - Imprestável, sem serventia. (tipo nojento que a Maria do Rosário gosta de chamar de vítima e que meu pai chamava na bala)
Alcaide - Imprestável, sem serventia. (tipo nojento que a Maria do Rosário gosta de chamar de vítima e que meu pai chamava na bala)
Algariada – Agitada,
alvorotada.
Alimal - Animal
Alimal - Animal
Bacudo – Homem
sem instrução e sem trato social.
Biguano – O mesmo
que Bacudo.
Boca-de-sino –
Revólver.
Borrachos – Bêbados.
Brigadiano: Militares da Brigada Militar que só existe no
RS, no Brasil chamam de Policia Militar.
Briosa - Maneira carinhosa com que os Gaúchos chamam a Brigada Militar.
Briosa - Maneira carinhosa com que os Gaúchos chamam a Brigada Militar.
Caborteiro – Velhaco,
mau, esperto, trapaceiro.
Camboim – Madeira
dura e resistente, cassetete.
Carreteira – Estrada.
Desguaritado – Sem
moradia, desprotegido.
Entreverado – Misturado.
Folheirita – Fácilmente,
sem percalços
Jaguara -
Cachorro
Légua-de-beiço – Distância
pequena, logo ali.
Légua-de-queixo – Distante,
longe, mais longe do que légua-de-beiço.
Maleva – Mau,
bandido.
Mandinho – Gurizinho. Menininho. Piá.
Mata-cachorro –
Por algum tempo os brigadianos (RS) foram chamados de mata-cachorro.
Milito –
Milico - Soldado
Pajonal – Macegal
(Pronuncia-se parrônal).
Piá – O mesmo
que mandinho, Piá para os charruas e minuanos quer dizer coração.
Vinagre – Cachorro vira-lata.
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