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terça-feira, 29 de setembro de 2015

O Nascimento de Lúcia

No dia 4 de janeiro de 1948, eu não havia chegado ainda aos dois anos de vida, mas guardo bem aquela manhã, pois foi uma manhã de corre-corre, dia em que eu pouco vi minha mãe. Algo estranho estava acontecendo.

                Mamãe aos 15 anos.

Ouvi choro de criança, e minutos após meus pais saíram de casa em um automóvel e ficamos sozinhos em casa.

                  1948 - Fevereiro - Joaquim e Ieda.

Ieda já com nove anos me cuidava. Deixando-me às vezes sozinho dentro do chiqueirinho e sumia, lá pelas tantas voltava correndo e pulando, falava alguma coisa e quando eu me dava por conta ela já havia sumido novamente.

                  1947 - DezembroJoaquim.

Joaquim distante de tudo brincava montado em seu cavalinho-de-pau, amarelo e azul correndo pelo pátio. Eu tentava ver por onde ele andava, mas não conseguia, a não ser quando diante da porta ele passava, foi quando Ieda, com algum esforço, empurrou o chiqueirinho, até a porta, assim eu podia ver meu irmão correndo e brincando no lado da casa, um dia quente e seco, que o Sol majestoso espargia sua ofuscante luz que deixava mais claro nosso pago pobre e silencioso.

                    1947 - Euzinho .

Dali podia ver também, por entre as cercas-vivas, o pátio da casa do seu Artur e de dona Vicentina, que nessa época nem imaginava seus nomes, onde duas vacas holandesas caminhavam de um lado para outro, lentas e pesadas, e quando em vez um menino meio gordinho chegava à uma porta, olhava as vacas e sumia porta  a dentro. Com o passar do tempo fui saber que se tratava do filho desse casal, chamado João, que nós, tempo depois começamos a chama-lo de João da Vicentina.

Esse casal tinha outros filhos, o José, a Albina e a Julieta, que nessa época deveria ter por volta de onze anos, que com o passar do tempo vim, a saber, como se chamavam.
                       Papai, inicio dos anos 40.  

Nunca saíram de minha mente as sombras das árvores, que naquela hora estavam curtas e quase que totalmente embaixo das copas das árvores e uma nesga fina, como nunca havia visto se espraiava ao lado da casa, o que muito tempo depois pude saber que as sobras são guiadas pela posição do Sol o que advenho, tempos depois a noção de tempo. Portanto hoje tenho a convicção de que neste interregno que fiquei junto a porta seriam entre as 10 e 11 horas da manhã.

                  Studebaker

Lá pelas tantas, portanto pouco passando das 11 horas, meus pais voltaram para casa, também em um automóvel, que estacionou em frente a nossa casa e pude ver que era um automóvel de cor marrom caramelo, com um circulo e uma ponta niquelada na ponta do nariz do motor. Só com o tempo vim, a saber, que se tratava de um automóvel Studebaker, que era usado como carro-de-praça, como naqueles anos eram chamados os taxis.

                   
Deixo tudo bem explicado para que ninguém se faça de salame e fique pensando como é que eu, sem ter dois anos poderia saber horas, marcas de automóveis e outras coisas. É óbvio que o que ficou em minha mente com o tempo fui correlacionando.

Sim porque tem uns que tiram todos para “lóki”.

Entraram e foram direto para o seu quarto, e após ouvi novamente choro de criancinha.

- “É a nossa irmãzinha!” - Exclamou Ieda.

               1947-Joaquim e Ieda, ao fundo mamãe grávida de Lúcia

Meus irmãos mais velhos e eu éramos morenos, cabelos negros e olhos escuros. Quando pequenos parecíamos um trio de curumins, ou se meus conhecimentos antropológicos da época fossem desenvolvidos poderia dizer que se tratava de um trio de chineses, tais são nossas origens aborígenes tão semelhantes aos orientais. Meus pais também eram morenos, mas ambos tinham a pele bem branca, sendo que meu pai tinha os olhos verdes, coisa que eu só fui notar bem mais tarde, pois o que mais me chamava a atenção eram seus enorme e alvos dentes e seu característico bigode preto e bem aparado.

                   1948 - Eu, euzinho aos dois anos.

Quando fui levado ao quarto de mamãe para ver a nossa recém-chegada irmãzinha, para mim foi um trauma, foi uma visão aterradora. Aquele bichinho que ali chorava todo enroladinho numa manta branca não fazia parte do meu mágico mundo, era um ser alienígena. Afinal era branca, rósea, de bochechas vermelhas, olhos claros e cabelos quase brancos de tão loiros. E chorava, chorava, e digo mais, chorava.

E eu, desesperado em ver aquela coisinha branca chorando, chorava também e fazia força no colo de Ieda para sair dali, pois em minha cabecinha passava um pensamento aterrador:

- Que bicho é este?

Sentia um medo terrível daquela irmãzinha, que não era uma curumim. Não era uma che iná. Não era um ser igual aos meus.

                  1955 - Lúcia., aos 7 anos.

Com o passar do tempo é que fui acostumando em ter como irmã e como parte da família uma menininha tão diferente fisicamente.

                        Papai aos 16 anos.

Não havia na época o tal de exame de “DNA”, o que não seria necessário, já que a menininha era indubitavelmente a cara do pai. Com o tempo, foi se mostrando cada vez mais parecida, principalmente em sua marcante personalidade “floribalesca”, palavra inventada no seio familiar para designar qualquer coisa igual ou referente ao nosso pai Floribal. De personalidade marcante, dura, mandonista, despachada e brava, e ao mesmo tempo pode ser delicada, doce, amiga, amorosa, sensível, que muitas vezes seus olhos apresentam um brilho especial, quando seu coração de coronárias do Velho Pedra, mostra-se tão mole e derretido quanto mel de jataí.

Daí entendo que o racismo tenha surgido pelo medo do diferente e com o passar de centenas de milhares de anos isto esteja tão preso as nossas memórias que afloram como quando vi pela primeira vez minha irmãzinha Maria Lúcia.


Infelizmente não possuo fotos dela quando pequenininha, mas era uma abissal diferença, da água para o vinho. Um trio de curumins com uma irmãzinha de mesmas feições, porém branca e loira, a única que pela cor saiu igualzita ao avô uruguaio, neto de espanhóis.

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